terça-feira, março 6

Sinal fechado

- Alice!
Ele estava poucos metros à minha frente quando gritou por ela, que quase subia a calçada, mas parou quando ouviu aquela voz que parecia a dele, só podia ser a dele, chamando-a numa faixa de pedestres na São Pedro de tarde. Com um pé ainda no asfalto, ela se manteve paralisada no meio do caos juazeirense como se alguém tivesse gritado “estátua!” e em vez de subir a via, voltou um pé e se virou. Tinha dor e lágrimas nos olhos. Aquela voz trouxe um peso aos seus ombros que só o passado sabe trazer.
- Oi, Léo!
Ela então soltou um sorriso daqueles que a gente solta quando uma coisa qualquer que a gente vive pensando de repente aparece na frente da gente, que já não sabe como reagir a tamanha coincidência. Se ensaiou o que fazer na hora dessa emergência, deve ter dado um branco, pois ela não sabia se ia ou ficava, se falava ou calava, se corria ou dissolvia no ar.
Até então eu não havia visto o rosto dele, um tipão musculoso, ombros que eu invejo e jeito charmoso de caminhar. Alice, cara de estudante, pele de quem não sabe o que é sol, menininha delicada e fofurinha, continuou parada, segurando a alça da bolsa de lado com as duas mãos, o corpo jogado sobre uma perna, mordendo o lábio e visivelmente desconfortável. A essa altura, ainda caminhávamos próximos, eu e Léo, de uma forma que deu pra acompanhar melhor a novela.
- Como é que você tá? Nunca mais te vi. – Ele falou, enquanto caminhava tranquilo na direção dela. Foi com a mão direita estendida, num ritual típico de qualquer um, mas numa inquietação própria de quem já se viu muito um dia. Alice ignorou a mão que esperava um aperto da dela. Deu dois passos em direção a ele e o abraçou segurando-o pelo pescoço com os dois braços. Um abraço rápido, para o qual ela precisou ficar na ponta dos pés para poder alcançá-lo, e ele ainda teve de se abaixar um pouco. Quando ele ia responder, ela o soltou – breve, seca, grossa. A dor, que se equilibrava sobre uma corda fina de seda e dúvidas, caiu ali entre as linhas brancas para segurança de pedestres e amantes. O farol ainda estava vermelho, mas a vida passava por cima deles dois, que andavam a pé numa estrada cheia de poeira e pedras, com tantos espinhos e buracos. A cidade seguia e eles cegos se perseguiam pelos sinais fechados, curvas do passado, esquinas escuras e ruas sujas dos esgotos do ontem que foi nós, mas hoje fede e a prefeitura não manda limpar. Nesse meio tempo, passei deles e pude ver o rosto de Léo. Ele sorria um sorriso gato-de-Alice, lua crescente, diferente dos olhos dela, agora minguados. Léo sorriu e confirmou as suspeitas, negou as chances. Por isso ela não quis o aperto de mão, não quis afago nem muito toque. O abraçou porque relembraria daquilo por alguns dias e morreria de arrependimento se não o tivesse feito.
Quando o largou, duas lágrimas rolavam por sua face e ela já não tinha condições de olhar para ele. Usou o pulso para se enxugar, virou as costas e saiu sem dizer palavra alguma. Atordoada que estava, passou por mim e bateu no meu ombro, eu que estava parado, virado pra eles, sem perder um só detalhe.
- Desculpa, moço. – e seguiu.
Volta e meia o amor tropeça em mim, pisa no meu pé, pede perdão por ter perturbado.
- Mas não foi nada, que é isso!
Léo me olhou de relance, mas não desconfiou que eu sei de tudo e continuou a andar tranquilo como antes. Não parecia querer chamá-la para uma conversa mais calma, talvez tentar uma reconciliação, nem muito menos queria consolá-la. Quase fui nele:
- Meu filho, o que você quer da vida?
A vida, que não quer nada dele, seguiu. E ele seguiu junto. Alice, lá na frente, ainda chorava. Por um bom motivo, que eu infelizmente não sei, não quis esperar por ele. O sinal abriu e eu tratei de correr porque meu plano de saúde não cobre voyeurismo de romance alheio.

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