terça-feira, novembro 1

Os três meninos

Na bolsa, duzentos reais em dinheiro, um mp4, um fone de ouvido, meus documentos, cartão do banco, livros, um caderno do flamengo, uma agenda com várias fotos de família, um celular já velho e meus óculos – eu listava na viatura da polícia, percorrendo as ruas dessa Juazeiro santa e sombria, procurando prováveis suspeitos: três moleques de bicicleta. Só me importa encontrar a bolsa jogada na rua, eu dizia. A bolsa, eu queria muito achar minha bolsa. “Colorida e cheia de desenhos?”, confirmou uma voz no telefone do carro. Sim. Esquisita, feminina, cheia de desenhos e que nem é minha, é da minha irmã.
Tudo acaba, eu sei. Sempre soube e até gosto de ser lembrado às vezes. Como esses gritos que a vida dá, essas cutucadas no braço enquanto eu ando na rua, esses três meninos de bicicleta me parando, pedindo a bolsa de menina. O mp4 tocando Dominguinhos, o celular que em breve seria substituído por outro mais moderno, os duzentos reais pra pagar a tatuagem que acabei de fazer, os livros da biblioteca, aqueles olhos quase estendendo braços pra puxar minha bolsa, tudo. Tudo quase acabado, tudo quase acabando.
Aqueles olhos, aquela arma, eu lembro que já os vi. Sim, eu tenho certeza de que os vi. Agora vieram pra buscar umas coisas que nem me importam tanto (em um mês de trabalho consigo reaver tudo), mas antes vieram buscar algo que eu não queria deixar levar. Era meu pai e acho que eu sou a pessoa que mais queria, com todo desejo do meu coração, que ele ficasse, que não fosse, que existe aqui o máximo possível. Meu e vivo.
Quando o tiraram de mim, não me foi dado o direito de me defender, de defendê-lo, segurá-lo com força e dizer que não, que era meu, só meu, e que matá-lo não ia servir de nada pra quem matou. Quanto aos três meninos de bicicleta querendo a bolsa colorida, não quis titubear. Como se a bolsa sempre fosse deles, como se os duzentos reais eu tivesse trabalhado pra pagar a eles, como se os óculos que Ramon me deu não fosse assim tão importante, como se eles até curtissem Dominguinhos tocando Jobim.
Tive tempo de parar num posto (para tentar enganá-los e ser enganado) e comprar três cervejas. Saindo de lá, a sacola com Skol em lata eles não quiseram, pois eram novos demais pra beber essa coisa. Os policiais me deixaram em casa depois do passeio, que eu agradeci com um aperto de mão em cada um deles, e eu fui beber a cerveja que os três rejeitaram. Na cerca da calçada, pensando nas perdas passadas e futuras, pensando no fim das coisas e no chão que sempre atrai tudo, esse chão onde me jogo freqüentemente em quedas e choros, eis que passa um carro de lixo com um cara atrás. Ele solta um sorriso pra mim, levanta o polegar fazendo um sinal de joinha e grita:
- E aí?
E aqui, meu irmão, muita saudade, muita perda e muito assalto ao meu coração tão cansado de despedidas.
Sinceramente, desejei que esse cara voltasse a pé depois de ter encerrado o expediente pra tomar a cerveja comigo. Então comentaríamos como é chato trabalhar o mês todo pra, no fim, contar os centavos e ver que não deu pra nada. Perceberíamos que temos muito em comum, não temos medo de três meninos de bicicleta e iríamos rir da situação: assaltantes dividindo meus despojos, vendo uma foto do meu pai na minha agenda e minha nota baixa na prova de Fotojornalismo guardada dentro do caderno do Flamengo, sendo que eu sou torcedor do Vasco. Eles então ligariam o mp4 e, ao dar o play, o lindo som da sanfona de Dominguinhos tocando Wave. O resto é mar.

2 comentários:

  1. Gostei muito de seu texto...tocante como você. Sensível como você. Menino como você. Eis que você conseguiu me transportar até a historia do assalto com uma leveza que pouca gente tem...Eita menino...Parabéns!!!

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  2. Impressionante como tu consegue transformar um fato ocorrido contigo em uma emoção que contagia a todos! É simplesmente por isso que você é um dos caras que eu mais admiro. Parabéns :D

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